Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Os lazeres de um Espírita no deserto



Reproduzimos sem comentários as seguintes passagens de uma carta que, em março último, nos escreveu um dos nossos correspondentes, capitão do exército da África.

“O Espiritismo se espalha no norte da África e ganhará o centro, se os franceses para ali se dirigirem. Ei-lo que penetra em Laghouat, nas bordas do Saara, a 33 graus de latitude. Emprestei os vossos livros; alguns de meus camaradas os leram; discutimos e a força e a razão ficaram com a Doutrina.

“Há alguns anos entrego-me ao estudo da anatomia, da fisiologia e da psicologia comparadas. A mesma corrente de ideias arrastou-me para o estudo dos animais. Pela observação, pude dar-me conta de que todos os órgãos, todos os aparelhos se simplificam, descendo às raças e espécies inferiores. Como a Natureza é bela para estudar! Como se sente o espírito espalhado por toda parte! Algumas vezes passo longas horas a seguir os hábitos e os movimentos da vida dos insetos e dos répteis destas regiões. Assisto às suas lutas, aos seus esforços, às suas astúcias para assegurar a existência; contemplo a batalha das espécies. O Saara, em cujas bordas estamos acampados há mais de um ano, tão deserto para os meus camaradas, ao contrário me parece muito povoado. Onde eles encontram o exílio, eu encontro a liberdade! É que eu sei que Deus está em toda parte, e que cada um leva a felicidade em si mesmo. Quer eu esteja no polo ou no equador, meus amigos do espaço me seguirão, e eu sei que os caros invisíveis podem povoar as mais tristes solidões. Não que eu desdenhe a companhia de meus semelhantes, nem que seja indiferente às afeições que conservei na França, oh não! porque me tarda rever e abraçar a minha família e todos os que me são caros, mas é somente para testemunhar que se pode ser feliz em qualquer ponto do globo em que se encontre, quando se toma Deus por guia. Para o espírita jamais há isolamento; ele se sabe e se sente constantemente rodeado de seres benevolentes, com os quais está em comunhão de pensamentos.

“Vossa última obra, A Gênese, que acabo de reler, e sobre diversos capítulos da qual me detive particularmente, nos desvenda os mistérios da criação e dá um terrível golpe nos preconceitos. Essa leitura me fez um bem imenso e abriu-me novos horizontes. Eu já compreendia a nossa origem e via em meu corpo material o último anel da animalidade na Terra; eu sabia que o espírito, durante a sua gestação corporal, toma uma parte ativa na construção do seu ninho e apropria o seu envoltório às suas novas necessidades. Esta teoria da origem do homem poderá parecer aos orgulhosos atentatória à grandeza e à dignidade humanas, mas ela será aceita no futuro, por causa de sua simplicidade e de sua amplitude empolgantes.

“Com efeito, a Geologia nos faz ler no grande livro da Natureza. Por ela, achamos que as espécies de hoje teriam por avós as espécies cujos restos se encontram nas camadas terrestres; não se pode mais negar que há uma progressão contínua no desenvolvimento das formas orgânicas, quando vemos aparecer primeiro os tipos mais simples. Esses tipos foram modificados pelos instintos dos próprios animais, providos de órgãos apropriados às suas novas necessidades e ao seu desenvolvimento. Ademais, a Natureza muda os tipos quando a necessidade disto se faz sentir; a vida multiplica gradualmente seus órgãos e os especializa. As espécies saem umas das outras, sem que seja necessária uma intervenção miraculosa. Adão não saiu armado com todas as peças das mãos do Criador. Muito certamente um chimpanzé o deu à luz.

“As espécies não são absolutamente independentes umas das outras; elas se ligam por uma filiação secreta, e pode-se mesmo considerá-las solidárias até a Humanidade. Como dizeis muito judiciosamente, desde o zoófito até o homem, há uma cadeia na qual todos os anéis têm um ponto de contato com o anel precedente. E assim como o espírito sobe e não pode ficar estacionário, assim também o instinto do animal progride, e cada encarnação lhe faz transpor um degrau na escala dos seres. As fases dessas metamorfoses se contam por milhares de anéis, e as formas rudimentares, das quais algumas amostras se encontram nos terrenos silurianos, nos dizem por onde passou a animalidade.

“Não mais deve haver véu entre a Natureza e o homem, e nada deve ficar oculto. A Terra é nosso domínio: cabe-nos estudar as suas leis; a ignorância e a preguiça é que criaram os mistérios. Quanto Deus nos parece maior na harmonia e na unidade de suas leis!

“Sinceramente lamento as pessoas que se aborrecem, porque é uma prova que não pensam em ninguém, e que seu espírito está vazio como o estômago do indivíduo que tem fome.”

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