Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Intolerância e perseguição ao Espiritismo

O fato seguinte nos foi assinalado por um dos nossos correspondentes. Por conveniência, não revelamos o nome do lugar onde se passou, mas, se necessário, temos em mãos a peça justificativa.

O cura de... tendo sabido que uma de suas paroquianas havia recebido O Livro dos Espíritos, veio à sua casa e lhe fez uma cena escandalosa, apostrofando-a com epítetos muito pouco evangélicos; além disso, ameaçou-a de não enterrá-la quando morresse, se não acreditasse no diabo e no inferno; depois, apoderando-se do livro, levou-o.

Alguns dias depois, aquela senhora, que pouco se havia abalado com os impropérios, foi à casa do padre lhe reclamar o seu livro, dizendo de si para consigo que se ele não o devolvesse, não lhe seria difícil adquirir outro, e que saberia pô-lo em lugar seguro.

O livro lhe foi entregue, mas num estado que provava que uma santa cólera se havia descarregado sobre ele. Estava cheio de rasuras, de anotações, de refutações, nas quais os Espíritos eram tratados de mentirosos, de demônios, de estúpidos etc. A fé daquela senhora, longe de ficar abalada, foi mais do que fortalecida. Dizem que se apanham mais moscas com mel do que com vinagre. O sacerdote apresentou-lhe vinagre; ela preferiu o mel, e disse: Perdoai-lhe, Senhor, porque ele não sabe o que fez. De que lado estava o verdadeiro Cristianismo?

As cenas desta natureza eram muito frequentes há sete ou oito anos, e por vezes tinham um caráter de violência que caía no burlesco. Recordamo-nos daquele missionário que espumava de raiva pregando contra o Espiritismo, e se agitava com tanto furor que um instante temeram que caísse do púlpito. E aquele outro pregador que convidava todos os possuidores de obras espíritas a lhas trazerem, para fazer uma fogueira na praça pública. Infelizmente, para ele, não lhe trouxeram nenhum, e ele contentou-se em queimar no pátio do seminário todos os volumes que compraram nas livrarias. Hoje que se reconheceu a inutilidade e os inconvenientes, essas demonstrações excêntricas são muito raras; a experiência provou que elas desviaram mais gente da Igreja do que do Espiritismo.

O fato relatado acima tem um caráter de gravidade particular. Em sua igreja, o sacerdote está em sua casa, no seu terreno; dar ou recusar preces, conforme a sua consciência, está no seu direito; sem dúvida às vezes ele usa esse direito de maneira mais prejudicial do que útil à causa que defende, mas, enfim, está no seu direito, e achamos ilógico que criaturas que estão, por pensamento, senão de fato, afastadas da Igreja, que não cumprem nenhum dos deveres que ela impõe, tenham a pretensão de constranger um padre a fazer o que, certo ou errado, ele considera como contrário à regra. Se não credes na eficácia de suas preces, por que exigi-las dele? Mas, pela mesma razão, ele ultrapassa o seu direito quando se impõe aos que não o pedem.

No caso de que se trata, com que direito aquele padre ia violentar a consciência daquela senhora em seu próprio domicílio, ali fazer uma visita inquisitorial e apoderar-se do que lhe não pertencia? O que ganha a religião por esses excessos de zelo? Os amigos desajeitados são sempre prejudiciais.

O fato em si é de pouca importância e não é, em definitivo, senão uma pequena contenda que prova a estreiteza das ideias de seu autor. Dele não teríamos falado se não se ligasse a fatos mais graves, às perseguições propriamente ditas, cujas consequências são mais sérias.

Estranha anomalia! Seja qual for a posição de um homem, oficial ou subordinado a um título qualquer, não se lhe contesta o direito de ser protestante, judeu ou mesmo absolutamente nada; ele pode ser abertamente incrédulo, materialista ou ateu; pode preconizar tal ou qual filosofia, mas não tem o direito de ser espírita. Se for suspeito de Espiritismo, como outrora se era suspeito de jansenismo, é suspeito; se a coisa é confessada, ele é olhado de esguelha por seus superiores, quando estes não pensam como ele, considerado como um perturbador da Sociedade, ele que abjura toda ideia de ódio e de vingança, que tem como regra de conduta a caridade cristã na sua mais rigorosa acepção, a benevolência para com todos, a tolerância, o esquecimento e o perdão das injúrias, numa palavra, todas as máximas que são a garantia da ordem social, e o maior freio das más paixões. Então! O que, em todos os tempos e em todos os povos civilizados, é um direito à estima das criaturas honestas, torna-se um signo de reprovação aos olhos de certas pessoas que não perdoam a um homem o fato ter-se tornado melhor pelo Espiritismo! Sejam quais forem as suas qualidades, os seus talentos, os serviços prestados, se ele não for independente, se sua posição não for invulnerável, uma mão, instrumento de uma vontade oculta, abate-se sobre ele, o fere, se puder, nos seus meios de subsistência, nas suas afeições mais caras, e até na sua consideração.

Que semelhantes coisas se passem em regiões onde a fé exclusiva erige a intolerância em princípio, como a sua melhor salvaguarda, nada tem de surpreendente, mas que ocorram em países onde a liberdade de consciência está inscrita no código das leis como um direito natural, é mais difícil de compreender. Então é preciso que se tenha muito medo desse Espiritismo, que entretanto afetam apresentar como uma ideia oca, uma quimera, uma utopia, uma tolice que um sopro da razão pode abater! Se esta luz fantástica ainda não está extinta, não é, entretanto, por não terem soprado. Soprai, pois, soprai sempre: há chamas que são atiçadas soprando, em vez de apagá-las.

Entretanto, perguntarão alguns, o que podem censurar àquele que não quer e não pratica senão o bem; que cumpre os deveres de seu cargo com zelo, probidade, lealdade e devotamento; que ensina a amar a Deus e ao próximo; que prega a concórdia e convida todos os homens a se tratarem como irmãos, sem acepção de cultos nem de nacionalidades? Não trabalha ele para o apaziguamento das dissensões e dos antagonismos que causaram tantos desastres? Não é ele o verdadeiro apóstolo da paz? Unindo por seus princípios o maior número possível de aderentes, por sua lógica, pela autoridade de sua posição, e sobretudo por seu exemplo, não evitará conflitos lamentáveis? Se, em lugar de um, forem dez, cem, mil, sua influência salutar não será tanto maior? Tais homens são auxiliares preciosos; nunca são bastantes; não deveríamos encorajá-los e honrá-los? A doutrina que faz penetrar esses princípios no coração do homem pela convicção apoiada numa fé sincera, não é um penhor de segurança? Além disto, onde se viu que os espíritas fossem turbulentos e provocadores de perturbações? Ao contrário, não são sempre e por toda parte assinalados como gente pacífica e amiga da ordem? Todas as vezes que foram provocados por atos de malevolência, em vez de usar represálias, não evitaram com cuidado tudo quanto poderia ter sido uma causa de desordem? A autoridade alguma vez teve que castigá-los por algum ato contrário à tranquilidade pública? Não, porque um funcionário, encarregado da manutenção da ordem, dizia, há pouco, que se todos os seus administrados fossem espíritas, ele poderia fechar o seu escritório. Há homenagem mais característica prestada aos sentimentos que os animam? E a que palavra de ordem obedecem? Unicamente à de sua consciência, pois que não revelam nenhuma personalidade patente ou oculta na sombra. Sua doutrina é sua lei, e essa lei lhes prescreve fazer o bem e evitar o mal; por seu poder moralizador, ela conduziu à moderação os homens exaltados, nada temendo, nem Deus nem a justiça humana, e capazes de tudo. Se ela fosse popular, com que peso não atuaria nos momentos de efervescência e nos centros turbulentos? Em que, pois, pode esta doutrina ser um motivo de reprovação? Como pode ela chamar a perseguição sobre aqueles que a professam e a propagam?”

Admirai-vos que uma doutrina que não produz senão o bem tenha adversários! Mas, então, não conheceis a cegueira do espírito de partido? Quando foi que ele considerou o bem que pode fazer uma coisa, quando esta é contrária às suas opiniões ou os seus interesses materiais? Não esqueçais que, certos oponentes o são por sistema, muito mais que por ignorância. Em vão esperaríeis atraí-los a vós pela lógica de vossos raciocínios, e pela perspectiva dos efeitos salutares da doutrina; eles sabem disto tão bem quanto vós, e é precisamente porque o sabem que não o querem; quanto mais rigorosa e irresistível é essa lógica, mais os exaspera, porque lhes fecha a boca. Quanto mais lhes demonstram o bem que produz o Espiritismo, mais se irritam, porque sentem que aí está a sua força; assim, mesmo que ele devesse salvar o país dos maiores desastres, ainda assim o repeliriam. Triunfareis de um incrédulo, de um ateu de boa fé, de uma alma viciosa e corrompida, mas de gente de ideias preconcebidas, jamais!

Então, o que esperam eles da perseguição? Deter o surto das ideias novas pela intimidação? Vejamos, nalgumas palavras, se tal objetivo pode ser atingido.

Todas as grandes ideias, todas as ideias renovadoras, tanto na ordem científica quanto na ordem moral, receberam o batismo da perseguição, e isto assim devia ser, porque elas feriam os interesses dos que viviam velhas ideias, preconceitos e abusos. Mas, como essas ideias constituíam verdades, jamais viram eles a perseguição deterlhes o curso? Não está aí a história de todos os tempos para provar que, ao contrário, elas cresceram, consolidaram-se, propagadas pelo próprio efeito da perseguição? A perseguição foi o estimulante, o aguilhão as levou avante e fe-las avançarem mais depressa, superexcitando os Espíritos, de sorte que os perseguidores trabalharam contra si mesmos e não ganharam senão ser estigmatizados pela posteridade. Eles não perseguiram senão as ideias nas quais se via futuro; as que julgaram sem consequência, deixaram que morressem de morte natural.

O Espiritismo é, também, uma grande ideia; devia, pois, receber seu batismo, como suas precursoras, porque o espírito dos homens não mudou, e lhe acontecerá o que aconteceu aos outros: um acréscimo de importância aos olhos da multidão e, por consequência, maior popularidade. Quanto mais em evidência estiverem as vítimas por sua posição, maior repercussão haverá em razão da extensão de suas relações.

A curiosidade é tanto mais superexcitada quanto mais a pessoa é cercada de estima e consideração; cada um quer saber o porquê e o como; conhecer o fundo dessas opiniões que provocam tanta cólera; interrogam, leem, e eis como uma multidão de pessoas que jamais se teriam ocupado com o Espiritismo, são levadas a conhecê-lo, a julgá-lo, a apreciá-lo e a adotá-lo. Tal foi, como se sabe, o resultado das declamações furibundas, das interdições pastorais, das diatribes de toda espécie. Tal será o das perseguições. Estas fazem mais: elas o elevam ao nível das crenças sérias, porque o bom-senso diz que não se trata de frivolidades.

A perseguição às ideias falsas, errôneas, é inútil, porque estas se desacreditam e caem por si mesmas. Ela tem como efeito criar partidários e defensores, e retardar a sua queda, porque muitas criaturas as encaram como boas, precisamente porque são perseguidas. Quando a perseguição só ataca a ideias verdadeiras, ela vai diretamente contra o seu objetivo, porque lhe favorece o desenvolvimento: é, pois, em todo o caso, uma inépcia que se volta contra os que a cometem.

Um escritor moderno lamentava que não tivessem queimado Lutero, para destruir o Protestantismo em suas raízes; mas como não poderiam tê-lo queimado senão após a emissão de suas ideias, se o tivessem feito, o Protestantismo talvez estivesse duas vezes mais espalhado do que está. Queimaram Jean Huss. O que ganhou o concílio de Constança? Cobrir-se com uma nódoa indelével. Mas as ideias do mártir não foram queimadas; elas foram um dos fundamentos da reforma. A posteridade conferiu a glória a Jean Huss e a vergonha ao concílio. (Revista Espírita, agosto de 1866). Hoje já não queimam, mas perseguem de outras maneiras.

Sem dúvida, quando desaba uma tempestade, muitos se põem ao abrigo. As perseguições podem, portanto, ter por efeito um momentâneo impedimento à livre manifestação do pensamento. Crendo tê-lo abafado, os perseguidores adormecem numa segurança enganadora. Entretanto, ele não deixa de subsistir, e as ideias comprimidas são como plantas em estufa: crescem mais depressa.

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