Os detalhes fornecidos pelos jornais sobre o flagelo que neste momento dizima as populações árabes da Argélia nada têm de exagero, e são confirmados por todas as correspondências particulares. Um dos nossos assinantes de Sétif, o Sr. Dumas, teve a bondade de nos enviar uma fotografia representando a multidão de indígenas reunidos em frente à casa onde distribuem socorros. Esse desenho, de uma verdade chocante, é acompanhado da seguinte notícia impressa:
“Depois dos anos sucessivamente calamitosos que nossa grande colônia atravessou, um flagelo ainda mais terrível veio abater-se sobre ela: a fome.
“Apenas se tinham feito sentir os primeiros rigores do inverno, vê-se que à nossa porta os árabes morrem de fome. Eles chegam em bandos numerosos, seminus, com o corpo extenuado, chorando de fome e de frio, implorando a comiseração pública, disputando à voracidade dos cães alguns restos atirados com as imundícies na via pública.
“Embora eles próprios reduzidos a cruéis extremos, os habitantes de Sétif não podem contemplar com olhar impassível tamanha miséria. Logo, e espontaneamente, organizou-se uma comissão de beneficência, sob a presidência do Sr. Bizet, cura de Sétif. Foi aberta uma subscrição, cada um dá o seu óbolo e, em consequência, foram distribuídos socorros diários no presbitério, a duzentas e cinquenta mulheres ou crianças indígenas.
“Nos últimos dias de janeiro, enquanto uma neve abundante e longamente desejada caía em nossas regiões, pôde-se fazer melhor ainda. Foi instalado um forno num vasto local; ali, duas vezes por dia, os membros da comissão distribuem alimentos, não mais a duzentas e cinquenta, mas a quinhentas mulheres ou crianças indígenas. Ali, enfim, esses infelizes encontram um asilo e um abrigo.
“Mas, ah! Os europeus são obrigados, muito a contragosto, a limitar seus socorros às mulheres e às crianças... Para aliviar todas as misérias seria preciso uma boa parte do trigo que os poderosos caïds mantêm em seus silos. Entretanto, eles esperam poder continuar suas distribuições até metade do mês de abril.”
Se nesta circunstância não abrimos uma subscrição especial nos escritórios da Revista, é que sabíamos que nossos irmãos em crença não foram os últimos a levar sua oferenda aos escritórios de sua circunscrição, para tal efeito abertos pelos cuidados da autoridade. Os donativos que nos foram enviados para esse efeito, lá foram depositados.
O Sr. capitão Bourgès, da guarnição de Laghouat, a respeito escreve-nos o seguinte:
“Há alguns anos os flagelos se sucedem na Argélia: tremores de terra, invasão de gafanhotos, cólera, seca, tifo, fome, miséria profunda vieram, um a um, atingir os indígenas que agora expiam sua imprevidência e seu fanatismo. Os homens e os próprios animais morrem de fome e se extinguem sem ruído. A fome se estende ao Marrocos e à Tunísia. Entretanto, creio que a Argélia é mais flagelada. Não poderíeis crer quanto é comovente ver esses corpos macilentos e fanados, procurando alimento em toda parte, disputando com os cães vagabundos. Pela manhã, esses esqueletos vivos correm em volta do campo e se precipitam sobre os excrementos para deles extrair os grãos de cevada que os cavalos não digeriram e com os quais se repastam imediatamente. Outros roem ossos para sugar a gelatina que neles ainda se pode encontrar, ou comem a erva rara que cresce nas proximidades do oásis. Do meio desta miséria surge uma promiscuidade horrível, que se espalha nas últimas camadas da colônia, e espalha nos corpos materiais essas chagas corrosivas que deviam ser a lepra da antiguidade. Meus olhos se fecham para não ver tanta vergonha, e minha alma sobe ao Pai celeste, para lhe pedir que preserve os bons do contato impuro e dê aos homens fracos a força de não se deixarem arrastar nesse abismo malsão.
“A Humanidade ainda está muito longe do progresso moral que certos filósofos julgam já realizado. Em redor de mim não vejo senão epicuristas, que não querem ouvir falar do Espírito; eles não querem sair da animalidade; seu orgulho se atribui uma nobre origem e, contudo, seus atos dizem claramente o que eles foram outrora.
“Vendo o que se passa, acreditar-se-ia realmente que a raça árabe está fadada a desaparecer da Terra, porque, malgrado a caridade que se exerce para com ela, e a ajuda que lhe levam, ela se compraz em sua preguiça, sem nenhum sentimento de reconhecimento. Essa miséria física, proveniente das chagas morais, ainda tem sua utilidade. O egoísta, obsidiado, acotovelado a toda hora pelo infortunado que o segue, acaba abrindo a mão, e seu coração comovido sente, enfim, as suaves alegrias proporcionadas pela caridade. Acaba de nascer um sentimento que não se apagará e talvez mesmo o do reconhecimento surja no coração daquele que é assistido. Então se forma um elo simpático; novos socorros vêm dar vida ao infeliz que se extinguia e, do desespero, este último passa à esperança. O que parecia um mal fez nascer um bem: um egoísta a menos e um homem corajoso a mais.”
Os Espíritos não se enganaram quando anunciaram que flagelos de toda sorte devastariam a Terra. Sabe-se que a Argélia não é o único país em prova. Na Revista de julho de 1867, descrevemos a terrível moléstia que há um ano flagelava a ilha Maurício. Uma carta recente diz que à doença vieram juntar-se novas desgraças, e muitas outras regiões neste momento são vítimas de acontecimentos desastrosos.
Deve-se acusar a Providência por todas essas misérias? Não, mas a ignorância, a incúria, consequência da ignorância, o egoísmo, o orgulho e as paixões dos homens. Deus não quer senão o bem; ele tudo fez para o bem; ele deu aos homens os meios para serem felizes; a eles cabe aplicá-los, senão quiserem adquirir experiência às próprias custas. Seria fácil demonstrar que todos os flagelos poderiam ser conjurados, ou pelo menos atenuados, de maneira a paralisar os seus efeitos. É o que faremos posteriormente, numa obra especial. Os homens não devem queixar-se senão de si mesmos pelos males que suportam. A Argélia nos oferece neste momento um notável exemplo: são as populações árabes, despreocupadas e imprevidentes, embrutecidas pelo fanatismo, que sofrem fome, ao passo que os Europeus souberam prevenir-se contra ela. Mas há outros flagelos não menos desastrosos, contra os quais estes últimos ainda não souberam premunir-se.
A própria violência do mal constrangerá os homens a buscar o remédio, e quando eles tiverem inutilmente esgotado os paliativos, compreenderão a necessidade de atacar o mal pela raiz, por meios heróicos. Este será um dos resultados da transformação que se opera na Humanidade.
Mas, perguntarão, que importa aos que sofrem agora a felicidade das gerações futuras? Eles terão tido o trabalho, e os outros o proveito; eles terão trabalhado, suportado o fardo de todas as misérias inseparáveis da ignorância, preparado os caminhos, e os outros, porque Deus os terá feito nascer em tempos melhores, colherão. O que faz às vítimas das exações da Idade Média o regime mais sadio no qual vivemos? Pode a isto chamar-se justiça?
É fato que, até hoje, nenhuma filosofia, nenhuma doutrina religiosa tinha resolvido essa grave questão, de tão poderoso interesse, entretanto, para a Humanidade. Só o Espiritismo lhe dá uma solução racional pela reencarnação, essa chave de tantos problemas que se julgavam insolúveis. Pelo fato da pluralidade das existências, as gerações que se sucedem são compostas das mesmas individualidades espirituais que renascem em diferentes épocas e tiram proveito dos melhoramentos que elas próprias prepararam; da experiência que adquiriram no passado. Não são novos homens que nascem; são os mesmos homens que renascem mais adiantados. Trabalhando cada geração para o futuro, na realidade trabalha em proveito próprio. A Idade Média foi seguramente uma época muito calamitosa; revivendo hoje, os homens daquele tempo se beneficiam do progresso realizado e são mais felizes, porque têm melhores instituições. Mas, quem fez melhores essas instituições? Os mesmos que outrora as tinham feito más. Devendo os de hoje reviver mais tarde, num meio ainda mais depurado, colherão o que houverem semeado; serão mais esclarecidos, e nem os seus sofrimentos, nem seus trabalhos anteriores terão sido em pura perda. Que coragem, que resignação não lhes daria esta ideia, inculcada no espírito dos homens! (Vide A Gênese, Cap. XVIII, nº 34 e 35).