Meditações (Por C. Tschokke)(Artigo enviado de São Petersburgo)
Entre os livros de alta piedade, cujos autores, penetrados das verdadeiras ideias
cristãs, tratam todas as questões religiosas e abstratas com um zelo esclarecido,
isento de preconceitos e de fanatismo, um dos que na Alemanha desfrutam de
grandíssima estima, em todos os sentidos merecida, é, sem contradita, o que tem por
título Horas de Piedade (Stunden der Andacht), por C. Tschokke, distinto escritor
suíço, autor de muitas obras literárias escritas em língua alemã e muito apreciadas na
Alemanha. Esse livro teve, desde 1815, mais de quarenta edições. Os supostos
ortodoxos, mesmo protestantes, em geral acham que o livro é demasiado liberal em
suas ideias, em matéria de religião, e que o autor não se apoia suficientemente nos
dogmas e nas decisões dos Concílios; mas os crentes esclarecidos, os que procuram
as consolações da religião e desejam adquirir as luzes necessárias para compreender
as verdades, depois de o terem lido e meditado, farão plena justiça às luzes e à
tocante piedade do autor.
Damos aqui a tradução de duas meditações contidas nesse livro notável, porque
elas encerram ideias inteiramente espíritas, expostas com perfeita justeza, há mais de
cinquenta anos. Numa e noutra se acham uma definição muito exata e
admiravelmente elaborada do corpo espiritual ou perispírito, ideias muito sãs e
muito lúcidas sobre a ressurreição e a pluralidade das existências, através das quais
já se projeta a grande luz da sublime doutrina da reencarnação, esta pedra angular
do Espiritismo moderno.
W. FOELKNER
141a MEDITAÇÃO DO NASCIMENTO E DA MORTE
O nascimento e a morte são ambos cercados de trevas impenetráveis. Ninguém
sabe de onde veio, quando Deus o chamou; ninguém sabe para onde irá, quando
Deus o chamar. Quem poderia dizer-me se eu já não existi, antes de tomar o meu
corpo atual? O que é este corpo, que pertence tão pouco ao meu eu, que, durante
uma existência de cinquenta anos, eu o terei mudado várias vezes como uma roupa?
Eu não tenho mais a mesma carne e o mesmo sangue que tinha quando estava no
seio, nos anos de minha juventude e na maturidade. As partes de meu corpo que me
pertenceram durante a primeira idade, já estão há muito tempo dissolvidas e
evaporadas. Só o espírito fica o mesmo durante todas as variações que sofre o seu
envoltório terreno. Por que necessitaria eu, para a minha existência, do corpo que
possuía quando eu era uma criança? Se existi antes dele, onde estava eu? E quando
me desembaraçar de minha roupa atual, onde estarei? Ninguém me responde. Aqui
vim como que por milagre e é por milagre que desaparecerei. O nascimento e a
morte lembram ao homem esta verdade tantas vezes por ele esquecida porque ele se
encontra sob o poder de Deus.
Mas essa verdade é, ao mesmo tempo, uma consolação. O poder de Deus é o
poder da sabedoria, o encanto do amor. Se o começo e o fim de minha vida forem
envoltos em trevas, tenho que pensar que isto deve ser um benefício para mim, como
tudo o que vem de Deus é benefício e graça. Quando tudo em redor de mim
proclama a sua sabedoria suprema e a sua bondade infinita, posso crer que as trevas
que cercam o berço e o esquife sejam as únicas exceções? É possível que eu já tenha
existido uma vez, mesmo várias vezes? Quem conhece os mistérios da natureza dos
Espíritos? [1] Minha presença na Terra não seria talvez uma fraca imagem da
existência eterna? Já não vejo aqui a minha passagem de eternidade a eternidade,
como num espelho opaco?
Ousaria eu embalar-me em estranhos pressentimentos? Esta vida seria
realmente uma imagem em miniatura da existência eterna? Que seria se eu já tivesse
tido várias existências; se cada uma das minhas existências fosse uma hora de vigília
da infância de meu Espírito e cada mudança de seu envoltório, de suas relações ou o
que se chama morte, um letargo para um despertar com forças novas? É verdade que
me é impossível saber quantas vezes e como existi, antes que Deus me tivesse
chamado à existência atual; mas a criança de colo sabe mais do que eu de suas
primeiras horas? Então ela perdeu tanto a ponto de não se lembrar de seus primeiros
sorrisos e de suas primeiras lágrimas? Quando ela tiver mais idade certamente não
se recordará mais do que agora, mas saberá o que foi em seus primeiros anos; saberá
que sorriu, chorou, dormiu, acordou, sonhou como os outros. Se é possível aqui na
Terra, por que seria impossível que um dia, depois de uma viagem mais elevada de
meu espírito imortal, ele pudesse lembrar e analisar sua jornada, as diversas
circunstâncias em que se encontrou durante sua viagem e nos mundos que habitou?
Em que degrau de idade estou agora colocado? Ainda pareço a criança que uma hora
depois esquece os acontecimentos da hora precedente e não está em condições de
guardar a lembrança de um sonho que tendo-o transportado à vida exterior o separou
da vigília precedente; mas me pareço com a criança que, pelo menos, já sabe
reconhecer os seus pais. Ela esquece os prazeres e os desgostos do momento
decorrido, mas a cada despertar reconhece novamente suas feições queridas. Assim
se dá comigo: eu também reconheço meu Pai, meu Deus no Todo-Eterno. Eu o teria
procurado com os olhos, tê-lo-ia chamado, mesmo que ninguém me tivesse falado
dele, porque a lembrança do Pai Celeste, ao que se diz, é inata em cada homem.
Todos os povos guardam essa lembrança, mesmo os mais selvagens cujas ilhas
solitárias banhadas pelo oceano jamais foram abordadas por viajantes civilizados.
Dizem inata; talvez se devesse dizer herdada, transportada de uma vida anterior,
assim como a criancinha, num sonho posterior, se lembra da imagem de sua mãe
num sonho anterior.
Mas eu caio nos sonhos! Quem está em condições de aprová-los ou rejeitá-los?
Eles se assemelham às primeiras lembranças, muito vagas e muito fracas que uma
criança tem de algo que lhe parece ter ocorrido em seus momentos de passadas
vigílias. Nossas mais audaciosas suposições, mesmo quando as julgamos
verdadeiras, não são senão o reflexo fugidio e confuso de nossos sentimentos que
datam de um passado esquecido. Ademais, eu não mais me censuro por isso. Mesmo
supondo-as quiméricas, elas revelam o meu espírito, porque, encarando a nossa vida
terrena como uma hora de uma criança de colo, que vasto e incomensurável
perspectiva da eternidade se desdobra à minha frente! Como será, pois, a juventude
mais adiantada, a plena maturidade de meu espírito imortal, quando, ainda muitas
vezes, eu tiver velado, dormido e subido um maior número de degraus da escada
espiritual?
O dia da morte terrena tornar-se-á meu novo dia de nascimento para uma vida
mais elevada e mais perfeita, o começo de um sono que será seguido por um
despertar refrescante. A graça divina me sorrirá com um amor maior que a afeição
com que uma mãe terrena sorri ao filhinho que desperta do sonho, no momento em
que ele abre os olhos.
143a MEDITAÇÃO DA TRANSFIGURAÇÃO APÓS A MORTE
Se tenho o direito de burguesia nos dois mundos, se pertenço não só à vida
terrena, mas também à vida espiritual, penso que seja muito perdoável ocupar-me,
por vezes, do que me espera nesta última, para a qual um vago ardor me atrai
incessantemente... Entretenho-me de muito boa vontade com a lembrança dos que
me foram caros e que a morte levou, tanto quanto com aqueles que neste mundo me
cumulam de alegria com sua presença, porque os primeiros não deixaram de existir,
embora privados de um corpo material. A destruição do corpo não determina a
destruição do espírito. Continuo a vos querer, meus amigos ausentes, meus caros
defuntos! Posso eu temer não ser igualmente objeto de vossa afeição? Certamente
não. Nenhum mortal tem o poder de separar espíritos unidos por Deus, assim como
nenhuma sepultura tem esse poder.
Embora me seja oculta a sorte que me aguarda num outro mundo, penso que me
seja permitido meditar algumas vezes sobre este assunto, e procurar adivinhar, pelo
que aqui vejo, o que lá me poderia acontecer. Se na Terra nos é recusado ver,
devemos procurar alimentar em nós a fé que tudo vivifica. ─ Jesus Cristo falou
muitas vezes, em alegorias elevadas, do estado da alma após a morte do corpo, e
seus discípulos também gostavam de entreter-se sobre este assunto com os seus
confidentes, bem como com os que duvidavam da possibilidade da ressurreição dos
mortos.
A doutrina da ressurreição dos corpos era uma das mais antigas da religião
judaica. Os fariseus a ensinavam, mas de maneira grosseira e material, pretendendo
que todos os corpos enterrados nos túmulos deveriam necessariamente tornar-se, um
dia, o envoltório e o instrumento dos espíritos que os tinham animado na vida
terrestre, ─ opinião que foi plenamente refutada por um outro partido religioso
judaico, os saduceus.
Levado um dia a se pronunciar entre estas duas opiniões contrárias, o Cristo demonstrou que os dois partidos religiosos hebreus, à força de aberrações, tinham
chegado a erros inteiramente opostos; que a imortalidade da alma, isto é, a
continuação de sua existência no outro mundo, ou a ressurreição dos mortos, poderia
se dar e dar-se-ia infalivelmente, sem ser uma ressurreição grosseiramente material
dos corpos, providos de todas as exigências e de todos os sentidos terrestres
necessários à sua conservação e à sua reprodução. Os saduceus reconheceram a
verdade de suas palavras. Eles disseram: “Mestre, respondestes muito bem.” (Luc.
XX, versículos 27 a 39).
O que Jesus não discutia em público senão muito raramente em detalhe,
tornava-se assunto de seus íntimos entretenimentos com seus discípulos. Estes
tinham as mesmas ideias que ele sobre o estado da alma após a morte e sobre a
doutrina judaica concernente à ressurreição. “Insensatos que sois, diz o apóstolo
Paulo, não vedes que o que semeais não retoma vida, se não morre antes? E quando
semeais, não semeais o corpo da planta que deve nascer, mas somente o grão, como
o do trigo ou de qualquer outra coisa. O corpo, como uma semente, agora é posto em
terra cheio de corrupção e ressuscitará incorruptível. É posto na terra como um
corpo animal e ressuscitará como um corpo espiritual. Como há um corpo animal,
há também um corpo espiritual. A carne e o sangue não podem possuir o reino de
Deus e a corrupção não possuirá a herança incorruptível. (1 Cor. XV:37-50).
O corpo humano, composto de elementos terrestres, voltará à terra e entrará nos
elementos que compõem os corpos das plantas, dos animais e dos homens. Esse
corpo é incapaz de uma vida eterna; sendo corruptível, ele não pode herdar a
incorruptibilidade. Um corpo espiritual nascerá da morte, isto é, o eu espiritual
elevar-se-á como transfigurado acima das partes do corpo feridas pela morte, numa
liberdade maior e provido de um envoltório espiritual.
Esta doutrina do Evangelho, tal qual saiu das revelações de Jesus e de seus
discípulos, corresponde admiravelmente ao que já sabemos da natureza do homem.
É irrecusável que o espírito ou alma, além de seu corpo terrestre, é, na realidade,
revestido de um corpo espiritual, o qual, exatamente como a reprodução da flor de
uma semente apodrecida, se liberta pela morte do corpo material.
Diz-se muitas vezes, por alegoria, que o sono é o irmão da morte, e ele
realmente é. O sono não é senão a afastamento do espírito ou da alma, o abandono
provisório feito por ela das partes exteriores e mais grosseiras do corpo. A mesma
coisa ocorre no momento da morte. Durante o sono, nessas partes de nosso corpo
abandonadas por algum tempo por nossa personalidade mais elevada, não reside
senão a vida vegetativa. O homem fica num estado de insensibilidade, mas o sangue
circula nas veias; sua respiração continua; todas as funções da vida vegetativa estão
em plena atividade, assemelhando-se às da vida inconsciente das plantas. Esse
afastamento passageiro do elemento espiritual do homem parece necessário, de vez
em quando, para o elemento material, porque este último acaba por se destruir, por
assim dizer, a si mesmo, por um desgaste muito prolongado, e se enfraquece a
serviço do espírito. A vida vegetativa, abandonada a si mesma e deixada em repouso
pela atividade do espírito, pode então continuar a trabalhar sem entraves na sua
restauração, conforme as leis de sua Natureza. Eis por que, depois de um sono em
estado de saúde, sentimos nosso corpo como repousado, com o que se alegra o nosso
espírito. Mas depois da morte, a vida vegetativa também abandona os elementos
materiais do corpo que lhe deviam sua ligação, e eles se desagregam.
O corpo abandonado pelo espírito ou alma, em certos casos, nos parece ter
vida, mesmo quando a morte verdadeira já está consumada, isto é, quando o
elemento espiritual já o deixou. O cadáver abandonado por seu espírito continua a
respirar e o pulso a bater; diz-se: “Ainda vive.” Por outro lado, por vezes pode acontecer que a força vital, tendo positivamente abandonado algumas partes do
corpo, estas estão verdadeiramente mortas, enquanto o espírito e o corpo ficam
unidos nas outras partes do corpo onde ainda reside a força vital.
O sono, um dos maiores segredos da existência humana, merece as nossas
observações mais constantes e atentas; mas a dificuldade que apresentam essas
observações torna-se maior, porquanto, para fazê-las, o espírito observador é
forçado a sujeitar-se às leis da natureza material e deixar esta agir, para lhe dar a
faculdade de se prestar mais facilmente ao seu uso e às suas experiências. Todo sono
é o alimento da força vital. O espírito aí não tem nenhuma participação, porque o
sono é também completamente independente do espírito, tanto quanto a digestão, a
transformação dos alimentos em sangue, o crescimento dos cabelos, ou a separação
do corpo dos líquidos inúteis. O estado de vigília é um consumo de força vital, sua
expansão fora do corpo e sua ação exterior; o sono é uma assimilação, uma atração
dessa mesma força de fora. Eis por que encontramos o sono, não só nos homens e
nos animais, mas também nas plantas que, à aproximação da noite, fecham as
corolas de suas flores ou deixam pender suas folhas, depois de havê-las fechado.
Qual é, pois, o estado de nosso elemento espiritual, durante o seu afastamento
de nossos sentidos exteriores? Ele não é mais apto a receber as impressões de fora,
pelo uso dos olhos, dos ouvidos, pelo paladar, pelo olfato e pelo tato, mas poder-se-
ia dizer que durante esses momentos, o nosso eu se aniquila? Se assim fosse, nosso
corpo receberia todas as manhãs um outro Espírito, uma outra alma, em lugar
daquela que estaria destruída. Tendo-se o Espírito retirado de seus sentidos, continua
a viver e agir, embora não podendo manifestar-se senão imperfeitamente, tendo
renunciado por algum tempo aos instrumentos de que tem o hábito de se servir
ordinariamente.
Os sonhos são outras tantas provas da continuação da atividade do Espírito. O
homem desperto lembra-se de ter sonhado, mas essas lembranças geralmente se
tornam vagas ou obscuras pelas vivas impressões que se precipitam subitamente
para o Espírito ao despertar, por intermédio dos sentidos. Se mesmo nesse momento
ele ignora de que visões se havia ocupado durante o sono, não obstante conserva, no
momento de um despertar súbito, a consciência que sua atenção se destacou de
alguma coisa que o tinha preocupado, até então, dentro de si mesmo.
O sono se compõe sempre de visões, de desejos e de sentimentos, mas que se
formam de uma maneira independente dos objetos exteriores, pois os sentidos
exteriores do homem ficam inativos. É por isso que eles raramente deixam uma
impressão viva e durável na memória. Então o Espírito devia estar ocupado, embora
depois do sono não nos possamos recordar dos resultados de sua atividade. Mas qual
o homem que está em condições de se lembrar dos milhares dessas rápidas visões
que se apresentam ao seu espírito, mesmo em estado de vigília, em tal ou qual hora
do dia? Tem ele, por isso, o direito de pretender que seu espírito não teve visões,
justo no momento em que ele estava, antes de tudo, ativo e refletindo?
Durante o sono, o espírito conserva o sentimento de sua existência, tão bem
quanto em estado de vigília. Mesmo durante seu sono, ele sabe distinguir-se
perfeitamente dos objetos de suas visões. Cada vez que nos lembramos de um
sonho, achamos que era o nosso próprio eu que, com um sentimento muito
imperfeito de sua individualidade, flutuava entre as imagens de sua própria fantasia.
Podemos esquecer os acessórios dos sonhos que sobre nós produziram uma fraca
impressão, e durante os quais o nosso espírito não reagiu fortemente por seus
desejos e sentimentos. Por conseguinte, poderíamos também esquecer que então
tínhamos o sentimento de nossa existência, mas não é uma razão para supor que este
último tenha sido suspenso um só instante, pelo fato de não mais nos lembrarmos!
Há homens que, preocupados com graves reflexões, não sabem, mesmo em
vigília, o que se passa em torno deles. Estando o Espírito afastado das partes
exteriores do corpo e dos órgãos dos sentidos, concentra-se e não se preocupa senão
consigo mesmo e, exteriormente, eles parecem sonhar ou dormir com os olhos
abertos. Mas quem poderá negar que hajam guardado plenamente o sentimento de
sua existência, durante esses momentos de profunda meditação, embora eles então
não vejam com os seus olhos e não escutem com os seus ouvidos? Uma outra prova
da continuação incessante do sentimento de nossa existência e de nossa identidade é
o poder que possui o homem de despertar por si mesmo numa hora por ele
prefixada.
Consequentemente, não se pode dizer que um homem mergulhado num sono
mais ou menos profundo tenha perdido a consciência de si mesmo, quando, ao
contrário, traz em si o sentimento de sua existência, mas sem poder no-lo manifestar.
É justamente o caso dos delíquios, quando o elemento espiritual do homem se retira
por si mesmo, por efeito de uma perturbação passageira e parcial de sua vida
vegetativa, porque o espírito foge a tudo o que é morto e não se liga senão graças à
força vital, ao que, por si própria, não é senão matéria inerte. O homem desmaiado
não dá nenhum sinal exterior de existência, mas dela não está privado, do mesmo
modo que durante o sono. Muitas pessoas desmaiadas, assim como os adormecidos,
muitas vezes conservam a lembrança de algumas das visões que tiveram durante
esse estado, que tanto se avizinha do da morte; outros as esquecem. Há desmaios
durante os quais todo o corpo fica macilento, frio, privado de respiração e de
movimento e parece inteiramente um cadáver, enquanto o Espírito, achando-se ainda
em comunicação com alguns dos sentidos, compreende tudo o que se passa em seu
redor, sem poder, como nos casos de catalepsia, dar qualquer sinal exterior de vida e
de consciência. Quantas pessoas desta maneira foram enterradas vivas, em pleno
conhecimento de tudo quanto determinavam para o seu enterro os seus parentes ou
amigos enganados por uma aparência fatal! [2]
Um outro estado mui notável do homem nos dá a prova da atividade
ininterrupta do Espírito e de seu conhecimento de si mesmo, que jamais se perde,
mesmo quando, logo em seguida, ele não mais se recorda. É o estado de
sonambulismo. O homem adormece em seu sono ordinário. Ele não escuta, não vê e
nada sente. Mas, de súbito, parece despertar, não de seu sono, mas em si mesmo. Ele
ouve, mas não com seus ouvidos; vê, mas não com seus olhos; sente, mas não pela
epiderme. Ele anda, fala, faz muitas coisas e exerce várias funções, com a admiração
geral dos assistentes, com mais circunspecção e mais perfeição do que em estado de vigília. Nesse estado ele se lembra mui distintamente dos acontecimentos ocorridos
quando estava acordado, mesmo daqueles que ele esquece durante sua vigília,
quando está de posse de todos os sentidos. Depois de haver ficado nesse estado
durante algum tempo, o sonâmbulo cai de novo no sono ordinário, e quando é tirado
deste, não se recorda absolutamente de nada do que se passou. Ele esqueceu tudo o
que disse e fez, e muitas vezes se recusa a acreditar o que dele contam os
expectadores. Poderíamos, entretanto, negar a seu Espírito o conhecimento de si
mesmo, assim como sua admirável atividade durante o sono sonambúlico? Quem
ousaria? O sonâmbulo, caindo novamente no sono que constitui seu despertamento
interior, lembra-se perfeitamente, nesse estado incompreensível para si próprio, de
tudo o que fez e pensou antes num estado semelhante, e do qual havia perdido
completamente a lembrança durante o estado de vigília de seus sentidos exteriores.
Como explicar este fenômeno? Como é que um homem que dorme não apenas
pode ver e ouvir com os seus sentidos exteriores inativos, mas isto mais
positivamente, mais perfeitamente do que em vigília? Porque sabemos que o corpo
não é senão o vaso ou envoltório exterior da alma; porque, sem ela, nada pode
experimentar, e porque o olho de um cadáver vê tanto quanto o olho de uma estátua.
É, pois, a alma, e unicamente a alma que sente, vê e ouve o que se passa fora dela. O
olho, o ouvido etc., não são senão instrumentos e dispositivos favoráveis do
envoltório exterior, para proporcionar à alma as impressões de fora. Mas há
circunstâncias nas quais, achando-se esse envoltório grosseiro partido ou estragado,
a alma, por assim dizer, o atravessa e continua a sua ação, sem para isto necessitar
ele seus sentidos exteriores. Então ela reage com um acréscimo de vigor, mas
completamente diferente de quando em seu estado ordinário ou de vigília, contra o
que não é morte no homem.
Portanto, é de fato a alma que sente, e não o corpo. Por consequência, é ela que
forma o verdadeiro corpo do Espírito, e o corpo material não é senão o seu
arcabouço externo, sua cobertura, seu envoltório. A experiência e inumeráveis
exemplos nos provam suficientemente que o Espírito jamais perde a sua atividade e
a consciência do seu eu, mesmo quando ele não pode lembrar-se minuciosamente de
cada momento particular de sua existência. Sabendo que o Espírito, absorvido em
suas profundas reflexões, perde de vista seu próprio corpo e tudo o que o cerca; que
em certas doenças, pode ele achar-se na absoluta impossibilidade de agir sobre as
partes exteriores de seu corpo e, algumas vezes pode prescindir completamente
(como no estado de sonambulismo), para a execução de seus desígnios, devemos
compreender claramente como o Espírito imortal, tendo deixado seu envoltório
material e perecível, conserva, depois de sua morte terrestre, a consciência e o
sentimento de sua existência, embora achando-se impossibilitado de manifestá-lo
aos vivos, por meio do cadáver, porquanto este não mais lhe pertence. Ao mesmo
tempo, compreendemos o que é o corpo espiritual de que fala o apóstolo Paulo; o
que devemos entender por corpo imperecível que deve renascer do corpo perecível
(I Cor. XV:4); como a fraqueza se abate e é semeada no túmulo, e como a força se
eleva e se lança para o céu, madura para uma vida melhor (1 Cor. XV:43). Eis a
verdadeira ressurreição da morte, a ressurreição espiritual. O que em nós é pó, deve
voltar ao pó e às cinzas, mas o Espírito, vestido num corpo transfigurado, leva daí
em diante a imagem do céu, exatamente como até agora tinha levado a imagem da
Terra (1 Cor. XV:49).
O corpo terrestre, apodrecendo no túmulo, nada mais sente, mas também jamais
sentiu por si mesmo. Era, pois, o corpo espiritual, a alma, que percebia e sentia tudo.
Assim ela continuará a fazê-lo, liberta de seu vaso partido, no entanto de uma
maneira infinitamente mais delicada e mais pronta. Tendo o Espírito consciência de si mesmo em seu envoltório espiritual, poderá, então, muito bem e infinitamente
melhor ainda, admirar a glória de Deus em suas criações, e ao mesmo tempo possuir
a faculdade de ver e amar os que lhe são caros. Mas ele não mais experimentará
necessidades materiais e sensuais, não terá mais lágrimas. Tornar-se-á a imagem do
céu, que é a sua verdadeira pátria.
Que sentirei eu no momento em que me chamares a ti, meu Criador, meu Pai!
no momento da minha transfiguração, quando, cercado de meus bem-amados
chorando em volta de mim e vendo meus bem-amados que me precederam
aproximar-se de mim, eu os bendirei a todos com um amor igual!
E quando, santificado por Jesus Cristo, participando de seu reino, apresentar-
me-ei diante de ti, ó meu Deus! adorando-te com o mais vivo reconhecimento, com
a mais profunda veneração, com a admiração sem limites! Que meu espírito imortal
esteja, então, bastante maduro para desfrutar essa felicidade suprema! Amém.
___________________________________________________
[1]
É preciso lembrar que estas linhas foram escritas cinquenta anos antes das revelações dos Espíritos, colhidas
pelo Espiritismo. (Nota do tradutor para o francês).
[2]
O célebre fisiologista alemão Dr. Buchner publicou em 1859, no no 349 de
Disdascalia, jornal científico que
editado em Darmstadt, um artigo sobre o uso do clorofórmio, no fim do qual acrescenta estas palavras muito notáveis na
boca do autor de
Força e Matéria: “A descoberta do clorofórmio e de seus efeitos extraordinários é não só de uma
grande significação para a ciência médica, mas também para duas de nossas principais ciências:
a Fisiologia e ─ não se
espantem muito ─ a
Filosofia.” Isto leva o doutor materialista a dizer que, mesmo sob o aspecto psicológico, o uso do
clorofórmio tem algum peso, é que achando-se os pacientes, durante as operações sofridas, num estado de semi-
atordoamento produzido pelo efeito do clorofórmio, várias vezes declararam, depois de despertar, que, durante a
operação, eles não haviam sentido nem dor, nem sentimento de angústia ou medo, mas que o tempo todo tinham ouvido
perfeitamente tudo o que se passava e se dizia em seu redor, sem, contudo, estar em condições de fazer qualquer
movimento, nem mexer um só de seus membros.
Este fato não vem provar positivamente a possibilidade da existência do espírito fora da matéria, que morre
quando o Espírito que a vivificava a deixa definitivamente?
Também o próprio magnetismo não oferece provas, por assim dizer palpáveis, da existência da alma independente
da matéria? E como ele é tratado pelos sábios e pelas academias? Em vez de lhe prestar toda a atenção e de se aplicar em
estudá-lo seriamente, eles limitam-se a negá-lo, o que certamente é mais cômodo, mas não honra as nossas corporações
científicas.
(Nota do tradutor do alemão para o francês).