Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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A comunicação seguinte foi obtida na sessão da Sociedade de Paris de 9 de outubro de 1863:

“Quantos dias se passaram, meus filhos, desde que tive a felicidade de entreterme convosco! Assim, é com grata satisfação que me encontro na minha cara Sociedade de Paris.

“Com que vos entreterei hoje? A maior parte das questões morais foram tratadas por penas hábeis. Não obstante, elas são de tal modo de meu domínio e o seu campo é tão vasto, que ainda encontrarei alguns grãos de verdade para semear. Além disso, mesmo que eu apenas repita o que outros já disseram, talvez apareçam alguns novos ensinamentos, porque as boas palavras, como as boas sementes, sempre produzem bons frutos.

“Para nós os livros santos são celeiros inesgotáveis, e o grande apóstolo Paulo, que outrora tanto contribuiu para o estabelecimento do Cristianismo, por sua poderosa predicação, vos deixou monumentos escritos que servirão, não menos energicamente, à expansão do Espiritismo.

“Não ignoro que os vossos adversários religiosos invocam seu testemunho contra vós, mas isto não impede que o ilustre iluminado de Damasco seja por vós e esteja convosco, ficai bem convencidos.

“O sopro que corre nas suas epístolas; a santa inspiração que anima os seus ensinos, longe de ser hostil à vossa doutrina, está, ao contrário, cheio de singulares previsões em vista do que acontece hoje. É assim que, na sua primeira epístola aos Coríntios, ele ensina que sem a caridade não existe nenhum homem, ainda que fosse santo, ainda que fosse profeta e transportasse montanhas, que se possa gabar de ser um verdadeiro discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como os espíritas, e antes dos espíritas, foi ele o primeiro a proclamar esta máxima que vos constitui uma glória: Fora da caridade não há salvação!

“Mas não é apenas por este lado que ele se liga à doutrina que nós vos ensinamos e que hoje propagais. Com aquela aguda inteligência que lhe era própria, ele havia previsto o que Deus reservava para o futuro e, notadamente, esta transformação, esta regeneração da fé cristã que sois chamados a assentar profundamente no espírito moderno, porquanto ele descreve, na citada epístola, e de maneira indiscutível, as principais faculdades mediúnicas, que ele denomina: os dons abençoados do Espírito Santo.

“Ah, meus filhos! Aquele santo doutor contempla com uma indissimulável amargura, o grau de aviltamento em que caiu a maior parte daqueles que falam em seu nome e proclamam, urbi et orbi, que outrora Deus deu à Terra toda a soma de verdades que ela era capaz de receber.

“Entretanto, o apóstolo tinha exclamado que em sua época não havia mais que uma uma ciência e profecias imperfeitas. Ora, aquele que se lastimava de tal situação sabia, por isto mesmo, que essa ciência e essas profecias um dia se aperfeiçoariam. Não está aí a condenação absoluta de todos os que condenam o progresso? Não está aí o mais rude golpe para aqueles que pretendem que o Cristo e os apóstolos, os Pais da Igreja e sobretudo os reverendos casuístas da Companhia de Jesus, teriam dado à Terra toda a ciência religiosa e filosófica à qual ela tinha direito? Felizmente o próprio apóstolo teve o cuidado de desmenti-los antecipadamente.

“Meus caros filhos, para apreciar, no seu justo valor, os homens que vos combatem, não tendes senão que estudar os argumentos de sua polêmica, suas palavras acerbas e os pesares que testemunham, como o Rev. Pe. Pailloux; que as fogueiras sejam extintas e que a Santa Inquisição não mais funcione ad majorem Dei gloriam.

Meus irmãos, vós tendes a caridade, eles a intolerância, por isso só temos que lamentá-los. Eis por que vos convido a orar por esses pobres transviados, a fim de que o Espírito Santo, que eles tanto invocam, se digne, enfim, a lhes iluminar a consciência e o coração.”

FRANÇOIS-NICOLAS MADEILEINE

A esta notável comunicação juntaremos as seguintes palavras de São Paulo, tiradas da primeira epístola aos Coríntios:

“Mas alguém me dirá: Como ressuscitarão os mortos, e qual será o corpo no qual eles voltarão?

“─ Como sois insensatos! Não percebeis que o que semeias não germina se primeiro não morre? E quando semeais, não semeais o corpo da planta que há de nascer, mas apenas o grão, como o do trigo ou de qualquer outra coisa. Depois disso, Deus lhe dá um corpo como lhe apraz, e dá a cada semente o corpo que é próprio a cada planta.

“Nem toda carne é a mesma carne, mas uma é a carne dos homens, e outra a carne dos animais; outra a das aves e outra a dos peixes.

“Também há corpos celestes e corpos terrestres, mas os corpos celestes têm um brilho diferente dos corpos terrestres.

“O Sol tem seu brilho, diferente da claridade da lua, assim como o brilho da Lua difere do brilho das estrelas, e entre as estrelas, uma é mais brilhante do que a outra.

“Assim será na ressurreição dos mortos. O corpo, como uma semente, está agora na Terra, pleno de corrupção, e ressuscitará incorruptível. Ele é posto na Terra todo disforme, mas ressuscitará glorioso. Ele é posto na Terra privado de movimento, mas ressuscitará em pleno vigor. Ele é posto na Terra como um corpo animal, mas ressuscitará como um corpo espiritual. Como há um corpo animal, também há um corpo espiritual.

“Eu quero dizer, meus irmãos, que a carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus, e que a corrupção não possuirá essa herança incorruptível. (São Paulo, 1ª Epístola aos Coríntios, Cap. XV, versículos 35 a 44 e 50).

O que pode ser esse corpo espiritual, que não é o corpo animal, senão o corpo fluídico, cuja existência é demonstrada pelo Espiritismo, o perispírito, de que a alma é revestida após a morte? Com a morte do corpo, o Espírito entra em confusão; por um instante perde a consciência de si mesmo, depois recupera o uso de suas faculdades e renasce para a vida inteligente. Numa palavra, ele ressuscita com o seu corpo espiritual.

O último parágrafo, relativo ao juízo final, contradiz positivamente a doutrina da ressurreição da carne, pois diz: “A carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus.” Assim, os mortos não ressuscitarão com sua carne e seu sangue, e não necessitarão reunir seus ossos dispersos, mas terão seu corpo celeste, que não é o corpo animal.

Se o autor do Catéchisme philosophique (Catecismo filosófico, do Pe. Feller, tomo III, pg. 83) tivesse meditado bem o sentido destas palavras, teria evitado fazer o notável cálculo matemático a que se entregou para provar que todos os homens mortos desde Adão, ressuscitando em carne e osso, com seus próprios corpos, poderiam caber perfeitamente no Vale de Josafá, sem muito incômodo.

Assim, São Paulo estabeleceu em princípio e em teoria o que hoje ensina o Espiritismo sobre o estado do homem após a morte.

Mas São Paulo não foi o único a pressentir as verdades ensinadas pelo Espiritismo. A Bíblia, os Evangelhos, os apóstolos e os Pais da Igreja dele estão cheios, de sorte que condenar o Espiritismo é negar as próprias autoridades sobre as quais se apoia a religião. Atribuir todos os seus ensinamentos ao demônio é lançar o mesmo anátema sobre a maioria dos autores sacros.

Assim, o Espiritismo não vem destruir, mas, ao contrário, restabelecer todas as coisas, isto é, restituir a cada coisa o seu verdadeiro sentido.

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