Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Senhor cura,

Em minha carta precedente, dei os motivos que me fazem não responder a vossa brochura, artigo por artigo. Não os lembrarei, e me limito a transcrever algumas passagens.

Dizeis: “Concluamos de tudo isto que o Espiritismo deve limitar-se a combater o materialismo, a dar ao homem provas palpáveis de sua imortalidade, por meio de manifestações de além-túmulo bem constatadas; que, fora deste caso, tudo nele não passa de incerteza, trevas espessas, ilusões, um verdadeiro caos; que como doutrina filosófico-religiosa, é apenas uma verdadeira utopia, como tantas outras consignadas na história, e da qual o tempo fará boa justiça, a despeito do exército espiritual do qual vos constituístes comandante-em-chefe.”

Para começar, senhor padre, concordai que as vossas previsões praticamente não se realizaram e que o tempo não tem pressa em fazer justiça ao Espiritismo. Se ele não sucumbiu, não cabe atribuir a culpa à indiferença e à negligência do clero e de seus partidários, pois ataques não faltaram: brochuras, jornais, sermões e excomunhões fizeram fogo em toda a linha; nada faltou, nem mesmo o talento e o mérito incontestável de alguns dos campeões. Se, pois, sob tão formidável artilharia as fileiras dos espíritas aumentaram, em vez de diminuir, é que o fogo virou fumaça. Ainda uma vez, diz-nos uma regra de lógica elementar que se julga uma força por seus efeitos. Não pudestes parar o Espiritismo, portanto, ele vai mais depressa do que vós, e a razão disso é que ele vai à frente, enquanto empurrais na retaguarda, e o século marcha.

Examinando os diversos ataques dirigidos contra o Espiritismo, ressalta um ensinamento ao mesmo tempo grave e triste. Os que vêm do partido céptico e materialista são caracterizados pela negação, a troça mais ou menos espirituosa, as brincadeiras geralmente tolas e banais, ao passo que ─ é lamentável dizer ─ é nos do partido religioso que se encontram as mais grosseiras injúrias, os ultrajes pessoais, as calúnias. É da cátedra que caem as palavras mais ofensivas. É em nome da Igreja que foi publicado o ignóbil e mentiroso panfleto sobre o pretenso balancete do Espiritismo. A respeito disso forneci alguns dados na Revista, e não disse tudo, por deferência e porque sei que todos os membros do clero estão longe de aprovar semelhantes coisas. É útil, entretanto, que mais tarde se saiba de que armas se serviram para combater o Espiritismo. Infelizmente, os artigos de jornais são fugidios como as folhas que os contêm; as próprias brochuras têm uma existência efêmera e em alguns anos os nomes dos mais fogosos e dos mais biliosos antagonistas provavelmente estarão esquecidos.

Só há um meio de prevenir este efeito do tempo: é colecionar todas as diatribes, venham de que lado vierem, e fazer um arquivo que não será uma das páginas menos instrutivas da história do Espiritismo. Não me faltam documentos para tal trabalho, e lamento dizer que são as publicações feitas em nome da religião que até hoje lhes têm fornecido o mais forte contingente. Constato com prazer que a vossa brochura ao menos constitui exceção quanto à urbanidade, senão pela força dos argumentos.

Segundo vós, senhor padre, tudo no Espiritismo não passa de incerteza, trevas espessas, ilusões, caos, utopias. Então haveis de convir que não é muito perigoso, pois ninguém deverá compreendê-lo. O que pode a Igreja ter que temer de uma coisa tão absurda? Se é assim, por que essa exibição de forças? Vendo esse desencadeamento, dir-se-ia que ela tem medo. De ordinário não se dá um tiro de canhão numa mosca que voa. Não é contradição dizer de um lado que o Espiritismo é temível, que ameaça a religião e do outro que ele nada é?

No trecho precitado, noto, de passagem, um erro, certamente involuntário, pois não suponho que, a exemplo de alguns de vossos colegas, altereis conscientemente a verdade para servir à vossa causa. Dizeis: “A despeito do exército espiritual do qual vos constituístes comandante-em-chefe.” Para começar, eu vos perguntarei o que entendeis por exército espiritual. É o exército dos Espíritos ou o dos espíritas? A primeira interpretação vos levaria a dizer um absurdo; a segunda, uma falsidade, pois é notório que jamais me constituí chefe, seja do que for. Se os espíritas me dão esse título, é por um espontâneo sentimento de sua parte, em razão da confiança que têm a bondade de me conceder, ao passo que dais a entender que me impus e tomei tal iniciativa, coisa que nego formalmente. Aliás, se os sucessos da doutrina que professo me dão uma certa autoridade sobre os adeptos, é uma autoridade puramente moral, que não uso senão para lhes recomendar calma, moderação e abstenção de qualquer represália contra os que os tratam mais indignamente, para lhes lembrar, numa palavra, a prática da caridade, mesmo para com os seus inimigos.

A parte mais importante desse parágrafo é aquela em que dizeis que “O Espiritismo deve limitar-se a combater o materialismo, a dar ao homem provas palpáveis de sua imortalidade, por meio de manifestações de além-túmulo bem constatadas.” Então para algo serve o Espiritismo. Se as manifestações de alémtúmulo são úteis para destruir o materialismo e provar a imortalidade da alma, não é o diabo que se manifesta. Para chegar a esta prova que, segundo vós, ressalta dessas manifestações, é preciso que nelas se reconheçam os pais e os amigos; assim, os Espíritos que se comunicam são as almas dos que viveram. Assim, senhor padre, estais em contradição com a doutrina professada por vários de vossos ilustres confrades, a saber, que só o diabo pode comunicar-se. É um ponto de doutrina ou uma opinião pessoal? No segundo caso, uma não tem mais valor que a outra. No primeiro, frisais a heresia.

Há mais. Considerando-se que as comunicações de além-túmulo são úteis para combater a incredulidade sobre a base fundamental da religião: a existência e a imortalidade da alma; considerando-se que o Espiritismo deve servir para tal fim, então a cada um é licito buscar na evocação o remédio para a dúvida que a religião, sozinha, não pôde vencer. Consequentemente, é permitido a todo crente, a todo bom católico e até mesmo a todo sacerdote, usá-lo para reconduzir ao aprisco as ovelhas desgarradas. Se o Espiritismo tem meios de dissipar dúvidas que a religião não pôde destruir, então ele oferece recursos que a religião não possui, do contrário não haveria um só incrédulo na religião católica. Por que, então, ela repele um meio eficaz de salvar almas?

Por outro lado, como conciliar a utilidade que reconheceis nas comunicações de além-túmulo com a proibição formal que a Igreja faz de evocar os mortos? Considerando-se que é princípio rigoroso que não se pode ser católico sem se conformar escrupulosamente com os preceitos da Igreja; que o menor desvio de seus mandamentos é uma heresia, ei-vos, senhor padre, bem e devidamente herético, pois declarais bom aquilo que ela condena.

Dizeis que o Espiritismo só é caos e incerteza; então sois muito mais claro? De que lado está a ortodoxia neste ponto, já que uns pensam de um modo e outros de outro? Como quereis que se esteja de acordo quando vós mesmo estais em contradição com as vossas palavras? Vossa brochura é intitulada: Refutação COMPLETA da doutrina espírita do ponto de vista religioso. Quem diz completo diz absoluto. Se a refutação é completa, não deve deixar nada subsistir. E eis que, do ponto de vista religioso, reconheceis uma utilidade imensa àquilo que a Igreja proíbe! Existe uma utilidade maior do que reconduzir incrédulos a Deus? Vossa brochura teria sido melhor intitulada: Refutação da doutrina demoníaca da Igreja. Aliás, não é a única contradição que eu poderia apontar. Mas tranquilizai-vos, pois não sois o único dissidente. Conheço pessoalmente bom número de eclesiásticos que não creem mais do que vós na comunicação exclusiva do diabo; que se ocupam de evocações com toda segurança de consciência; que não acreditam mais do que eu nas penas irremissíveis e na danação eterna absoluta, nisto concordes com mais de um Pai da Igreja, como vos será demonstrado mais tarde. Sim, muito mais eclesiásticos do que se pensa encaram o Espiritismo de um ponto mais elevado. Chocados com a universalidade das manifestações e com o espetáculo imponente dessa marcha irresistível, eles nisso veem a aurora de uma nova era, e um sinal da vontade de Deus, ante a qual se inclinam em silêncio.

Senhor padre, dizeis que o Espiritismo deveria parar em tal ponto, e não ir além. Em tudo é preciso ser consequente consigo mesmo. Para que essas almas possam convencer os incrédulos de sua existência, é necessário que falem. Ora, é possível impedi-las de dizer o que querem? É minha culpa se elas vêm descrever sua situação, feliz ou infeliz, diversa do que ensina a Igreja? se elas vêm dizer que já viveram e que viverão de novo corporalmente? que Deus nem é cruel, nem vingativo, nem inflexível, como o apresentam, mas bom e misericordioso? se, em todos os pontos do globo onde as chamam para se convencerem da vida futura, dizem a mesma coisa?

Enfim, é minha culpa se o quadro que fazem do futuro reservado aos homens é mais sedutor que aquele que ofereceis? se os homens preferem a misericórdia à danação?

Quem fez a Doutrina Espírita? Foram as palavras deles, e não a minha imaginação; foram os próprios atores do mundo invisível, as testemunhas oculares das coisas de além-túmulo que a ditaram, e ela só foi estabelecida sobre a concordância da imensa maioria das revelações feitas em todos os lados e a milhares de pessoas que eu jamais vi. Em tudo isto não fiz senão recolher e coordenar metodicamente o ensino dado pelos Espíritos. Sem levar em conta opiniões isoladas, adotei as do maior número, afastando toda ideia sistemática, individual, excêntrica, ou em contradição com os dados positivos da Ciência.

Desses ensinamentos e de sua concordância, bem como da atenta observação dos fatos, ressalta que as manifestações espíritas nada têm de sobrenatural, mas, ao contrário, são o resultado de uma lei da Natureza, até hoje desconhecida, como o foram durante muito tempo as da gravitação, do movimento dos astros, da formação da Terra, da eletricidade, etc. Considerando-se que essa lei está em a Natureza, ela é obra de Deus, a menos que se diga que a Natureza é obra do diabo. Essa lei, explicando uma porção de coisas sem ela inexplicáveis, converteu tantos incrédulos à existência da alma quantos converteu o fato propriamente dito das manifestações, e a sua prova está no grande número de materialistas reconduzidos a Deus só pela leitura das obras, sem nada terem visto. Teria sido melhor que tivessem ficado na incredulidade, com o risco de não estarem nem mesmo na ortodoxia católica?

A Doutrina Espírita não é, portanto, obra minha, mas dos Espíritos. Ora, se esses Espíritos são as almas dos homens, ela não pode ser obra do demônio. Se fosse minha concepção pessoal, vendo seu prodigioso sucesso, eu não poderia senão felicitar-me, mas eu não me poderia atribuir o que não é meu. Não, ela não é obra de um só, nem homem nem Espírito que, fosse quem fosse, não lhe poderia ter dado uma sanção suficiente, mas de uma multidão de Espíritos, e é isto que constitui a sua força, pois cada um pode receber a sua confirmação.

O tempo, como dizeis, far-lhe-á boa justiça? Para tanto seria preciso que deixasse de ser ensinada, isto é, que os Espíritos deixassem de existir e de se comunicarem em toda a Terra. Além disso, seria necessário que ela deixasse de ser lógica e de satisfazer às aspirações dos homens.

Acrescentais que esperais que eu reconheça o meu erro. Não penso nisso, e francamente não são os argumentos de vossa brochura que me farão mudar de opinião nem desertar do posto em que me colocou a Providência, no qual tenho todas as alegrias morais que um homem pode aspirar na Terra, vendo frutificar o que ele semeou. É uma felicidade muito grande e muito suave, eu vos asseguro, a vista dos homens que ela tornou felizes, de tantos homens arrancados do desespero, do suicídio, da brutalidade das paixões e reconduzidos ao bem. Uma só de suas bênçãos me paga largamente por todas as fadigas e insultos.

Ninguém tem o poder de me arrancar essa felicidade. Vós não reconheceis isto, porquanto queríeis tirá-la de mim. Eu a desejo para vós, de toda a minha alma. Tentai e vereis.

Senhor padre, eu vos dou o prazo de dez anos para ver o que então pensareis da doutrina.

Recebei, etc.

Allan Kardec

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