Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Alguns membros da Igreja apoiam-se na proibição de Moisés para proscrever as comunicações com os Espíritos, mas se sua lei deve ser rigorosamente observada nesse ponto, deve sê-lo igualmente em todos os outros. Por que seria boa em relação às evocações e má em outras partes? Há que ser consequente. Se se reconhece que sua lei não mais está em harmonia com os nossos costumes e a nossa época para certas coisas, não há razão para que assim não ocorra com a proibição das evocações.

Aliás, é necessário nos reportarmos aos motivos que o levaram a fazer tal proibição, motivos que então tinham sua razão de ser, mas que seguramente não mais existem.

Quanto à pena de morte, que devia decorrer da infração dessa lei, é preciso considerar que nisto ele era muito pródigo, e que na sua legislação draconiana, a severidade do castigo nem sempre era um indício da gravidade da falta.

O povo hebreu era turbulento, difícil de conduzir, e não podia ser domado senão pelo terror. Ademais, Moisés não tinha grande escolha nos meios de repressão, pois ele não tinha prisões nem casas de correção e seu povo não era de natureza a ter medo de penas puramente morais. Assim, ele não podia graduar sua penalidade como nos nossos dias. Ora, pelo respeito à sua lei, seria preciso manter a pena de morte para todos os casos em que ele a aplicava? Além disso, por que fazem reviver tal artigo com tanta insistência, quando se passa em silêncio o começo do capítulo, que proíbe aos sacerdotes a posse dos bens da Terra e ter parte em qualquer herança, porque o próprio Senhor é a sua herança? (Deuteronômio, Cap. XVIII).

Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente dita, promulgada no Monte Sinai e a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes e ao caráter do povo. Uma é invariável, a outra se modifica conforme o tempo, e não pode vir à cabeça de ninguém que possamos ser governados pelos mesmos meios que os Hebreus no deserto, assim como a legislação da Idade Média não poderia aplicar-se à França do século dezenove. Quem sonharia, por exemplo, em reviver hoje este artigo da lei mosaica: “Se um boi fere com o chifre um homem ou uma mulher, e a pessoa morrer, o boi será lapidado sem remissão, e não será comida a sua carne, e o dono do boi será absolvido”.

Ora, que diz Deus em seus mandamentos? “Não terás outro Deus senão eu; não tomarás o nome de Deus em vão; honra a teu pai e à tua mãe; não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não dirás falso testemunho; não cobiçarás o bem de teu próximo.” Eis uma lei que é de todos os tempos e de todos os países, e que, por isto mesmo, tem um caráter divino, mas ela não trata da proibição de evocar os mortos, de onde é necessário concluir que tal proibição era simples medida disciplinar e de circunstância.

Mas Jesus não veio modificar a lei mosaica, e sua lei não é o código dos cristãos? Ele não disse: “Ouvistes que foi dito aos Antigos esta e aquela coisa, e eu vos digo outra coisa? Ora, em parte alguma do Evangelho se faz menção à proibição de evocar os mortos. É um ponto muito grave para que o Cristo o tivesse omitido de suas instruções, quando tratou de questões de ordem muito mais secundária. Ou se deve pensar como um sacerdote a quem tal objeção foi feita, que “Jesus esqueceu-se de falar nisso.”

Sendo inadmissível o pretexto da proibição de Moisés, apoiam-se em que a evocação é uma falta de respeito aos mortos, cujas cinzas não devem ser perturbadas. Quando essa evocação é feita religiosamente e com recolhimento, não se vê nada de desrespeitoso, mas há uma resposta peremptória a dar a tal objeção. É que os Espíritos vêm de boa vontade quando chamados, e mesmo espontaneamente, sem serem chamados; que testemunham sua satisfação de se comunicarem com os homens, e às vezes se lamentam do esquecimento em que por vezes são deixados. Se eles fossem perturbados em sua quietude ou ficassem descontentes com o nosso chamado, ou o diriam ou não viriam. Se eles vêm, é porque isto lhes convém, pois não sabemos de ninguém que tenha o poder de obrigar Espíritos, seres impalpáveis, a se incomodarem, se não o querem, pois não lhes podemos apreender o corpo.

Alegam outra razão, dizendo que as almas estão no inferno ou no paraíso. As que estão no inferno dali não podem sair. As que estão no paraíso estão na sua inteira beatitude e muito acima dos mortais para se ocuparem com eles. Restam as que estão no purgatório, mas essas são sofredoras e devem pensar antes de tudo em sua salvação. Ora, se nem umas nem outras podem vir, é apenas o diabo que vem em seu lugar. No primeiro caso, seria muito racional supor que o diabo, autor e instigador da primeira revolta contra Deus, em rebelião perpétua, que nem experimenta arrependimento nem pesar pelo que faz, seja mais rigorosamente punido que as pobres almas que arrasta ao mal e que muitas vezes são apenas culpadas de uma falta temporária, de que sentem amargo arrependimento. Longe disso, o que acontece é exatamente o contrário. Essas almas infelizes são condenadas a sofrimentos atrozes, sem trégua nem mercê durante a eternidade, sem um só instante de alívio, e, durante esse tempo, o diabo, autor de todo esse mal, goza de plena liberdade, corre o mundo recrutando vítimas, toma todas as formas, se permite todas as alegrias, faz malandragens, diverte-se até interrompendo o curso das leis de Deus, porque pode até fazer milagres. Na verdade as almas culpadas deveriam invejar a sorte do diabo. E Deus o deixa agir, sem nada dizer, sem lhe opor nenhum freio, sem permitir que os bons Espíritos ao menos venham contrabalançar suas ações criminosas! De boa-fé, isto é lógico? E os que professam tal doutrina podem jurar, com a mão na consciência, que a poriam no fogo para sustentar que é a verdade?

O segundo caso levanta uma dificuldade igualmente grande. Se as almas que estão na beatitude não podem deixar o seu feliz repouso para virem em socorro aos mortais, o que, diga-se de passagem, seria uma felicidade muito egoística, por que a Igreja invoca a assistência dos santos, que devem gozar da maior soma possível de beatitude? Por que diz ela aos fiéis que os invoquem nas doenças, nas aflições e para preservá-los dos flagelos? Por que, segundo ela, os santos e a própria Virgem vêm mostrar-se aos homens e fazer milagres? Então eles deixam o Céu para virem à Terra? Se eles podem deixá-lo, por que outros não poderiam?

Como todos os motivos alegados para justificar a proibição de se comunicar com os Espíritos não podem suportar um exame sério, é preciso que haja outro, não confessado. Esse motivo bem poderia ser o medo que os Espíritos, muito clarividentes, viessem esclarecer os homens sobre certos pontos, e lhes dar a conhecer, ao justo, como são as coisas no outro mundo e as verdadeiras condições para ser feliz ou infeliz. Eis por que, da mesma maneira que se diz a uma criança: “Não vá lá, porque lá tem um lobo mau”, aos homens se diz: “Não chame os Espíritos porque é o diabo que vem.” Mas será em vão. Se proíbem aos homens de chamar os Espíritos, não impedirão que os Espíritos venham aos homens, para retirar a lâmpada debaixo do alqueire.

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