Sr. Cardon, Médico, morto em setembro de 1862
(Sociedade de Paris - Médium: Sr. Leymarie)
O Sr. Cardon tinha passado parte da vida na marinha mercante, como médico de um baleeiro e havia adquirido hábitos e ideias um pouco materialistas. Retirado para a aldeia de J..., ali exercia a modesta profissão de médico de roça. Há algum tempo ele estava convencido de que sofria uma hipertrofia do coração e, sabendo que era mal incurável, o pensamento da morte o mergulhava em sombria melancolia, de que nada o distraía.
Com cerca de dois meses de antecedência, ele predisse o seu fim, em determinado dia, e quando se viu perto da hora da morte, reuniu a família para lhe dizer o último adeus. A mãe, a esposa, os três filhos e outros parentes estavam reunidos em volta de seu leito. No momento em que a esposa tentou soerguê-lo, ele se abateu, tornou-se de um azul lívido, os olhos fecharam e julgaram-no morto. A esposa colocou-se diante dele, para esconder dos filhos esse espetáculo. Após alguns minutos, ele reabriu os olhos, e com o rosto por assim dizer iluminado, tomou uma expressão de radiosa beatitude e exclamou:
─ Oh! meus filhos, como é belo! Como é sublime! Oh! A morte! Que benefício! Que coisa suave! Eu estava morto e senti minha alma elevar-se bem alto, bem alto, mas Deus me permitiu voltar para vos dizer: Não temais a morte. Ela é a libertação... Não vos posso pintar a magnificência do que vi e as impressões de que me senti penetrado! Mas não poderíeis compreendê-las!... Oh! meus filhos, conduzivos sempre de maneira a merecer essa inefável felicidade, reservada aos homens de bem. Vivei segundo a caridade. Se tiverdes alguma coisa, dai uma parte àqueles a quem falta o necessário... Minha cara mulher, deixo-te numa posição que não é feliz. Devem-nos dinheiro, mas eu te conjuro, não atormentes os que nos devem. Se estiverem
em apuros, espera que possam pagar, e aos que não o puderem, faze o sacrifício. Deus te recompensará. Tu, meu filho, trabalha para sustentar tua mãe. Sê sempre um homem honesto e guarda-te de fazer algo que possa desonrar nossa família. Toma esta cruz que vem de minha mãe; não a deixes, e que ela te lembre sempre meus últimos conselhos... Meus filhos, ajudai-vos e sustentai-vos mutuamente, e que a boa harmonia reine entre vós. Não sejais vãos nem orgulhosos; perdoai aos vossos inimigos, se quiserdes que Deus vos perdoe...
Depois, tendo feito os filhos se aproximarem, estendeu as mãos para eles e acrescentou:
─ Meus filhos, eu vos abençoo.
E seus olhos se fecharam, desta vez para sempre, mas seu rosto conservou uma expressão tão imponente que, até o momento em que foi enterrado, numerosa multidão veio contemplá-lo com admiração.
Estes interessantes detalhes, transmitidos por um amigo da família, nos sugeriram uma evocação, que poderia ser instrutiva para todos, ao mesmo tempo que seria útil ao Espírito. Ei-la:
1.
Evocação
─ Estou junto de vós.
2.
─ Contaram-nos os vossos últimos momentos, que
nos encheram de admiração. Teríeis a bondade de descrever, melhor do que o
fizestes, o que vistes no intervalo do que poder-se-ia chamar vossas duas
mortes?
─ Poderíeis compreender o que vi? Não sei, porque não
encontraria expressões capazes de tornar compreensível o que vi durante os
instantes em que foi possível deixar meus despojos mortais.
3.
─ Tendes noção de
onde estivestes? É longe da Terra? Num outro planeta ou no espaço?
─ O Espírito não conhece o valor das distâncias, tais quais
as encarais. Levado não sei por que agente maravilhoso, vi o esplendor de um
céu como só nossos sonhos poderiam vislumbrar. Essa corrida pelo infinito é feita tão
rapidamente que não posso precisar os instantes gastos por meu Espírito.
4.
─ Atualmente desfrutais da felicidade
entrevista?
─ Não. Bem queria poder gozá-la, mas Deus assim não me pode
recompensar. Muitas vezes me revoltei contra os abençoados pensamentos ditados
pelo coração, e a morte me parecia uma injustiça. Médico incrédulo, tinha
adquirido na arte de curar uma aversão contra a segunda natureza, que é o nosso
movimento inteligente, divino. A imortalidade da alma era uma ficção própria
para seduzir naturezas pouco adiantadas, não obstante, o vazio me espantava,
pois maldizia muitas vezes esse agente
misterioso que fere sempre e sempre. A Filosofia me havia desviado, sem me dar
a compreender toda a grandeza do Eterno, que sabe repartir a dor e a alegria
para o ensino da Humanidade.
5.
─ Quando de vossa verdadeira morte, logo vos
reconhecestes?
─ Não; reconheci-me durante a transição feita por meu
Espírito para percorrer lugares etéreos; mas, após a morte real, não; forem
necessários alguns dias para meu despertar. Deus me havia concedido uma graça.
Vou dizer-vos a sua razão:
“Minha incredulidade primeira não mais existia. Antes da
morte eu havia crido, porque, depois de ter cientificamente sondado a matéria
pesada, que me fazia deperecer, eu não tinha, depois
das razões terrenas, encontrado senão a razão divina. Ela me tinha
inspirado, consolado, e minha coragem era mais forte que a dor. Eu bendizia o
que havia amaldiçoado; o fim me parecia a libertação. O pensamento de Deus é
grande como o mundo! Oh! Que suprema consolação na prece que dá enternecimentos
inefáveis; ela é o elemento mais seguro de nossa natureza imaterial; por ela
compreendi, cri firmemente, soberanamente, e é por isso que Deus, escutando
minhas abençoadas ações, quis recompensar-me antes de acabar a minha
encarnação.
6.
─ Poder-se-ia dizer que da primeira vez estáveis
morto?
─ Sim e não. Tendo o Espírito deixado
o corpo, naturalmente a carne se extinguia, mas quando
ele retomou a posse de minha morada terrena, a vida voltou ao corpo que
tinha sofrido uma transição, um sono.
7.
─ Nesse momento sentíeis os laços que vos
prendiam ao corpo?
─ Sem dúvida. O Espírito tem um elo difícil de partir e lhe é
preciso um último abalo da carne para voltar a sua vida natural.
8.
─ Como é que, durante a vossa morte aparente e
durante alguns minutos, o vosso Espírito pôde desprender-se instantaneamente e
sem dificuldade, enquanto que a morte real foi seguida de uma perturbação de
alguns dias? Parece que, no primeiro caso, os laços entre a alma e o corpo,
subsistindo mais que no segundo, o desprendimento deveria ser mais lento, e foi
o contrário que se deu.
─ Muitas vezes fizestes a evocação de um Espírito encarnado e
recebestes respostas reais. Eu estava na situação desses Espíritos. Deus me
chamava e seus servidores me tinham dito: “Vem...” Obedeci e agradeço a Deus a
graça especial que ele teve a bondade de me
fazer. Eu pude ver o infinito de sua grandeza e
dela me dar conta. Agradeço a vós que me permitistes
que antes da morte real eu ensinasse aos meus para que eles tivessem boas e justas encarnações.
9.
─ De onde vinham as belas e boas palavras que,
no vosso retorno à vida, dirigistes à vossa família?
─ Eram o reflexo do que tinha visto e ouvido. Os bons
Espíritos inspiravam-me a voz e animavam-me o rosto.
10.
─ Que impressão julgais que a vossa revelação
tenha feito nos assistentes, e particularmente nos vossos filhos?
─ Chocante, profunda. A morte não é mentirosa. Por mais
ingratos que possam ser, os filhos se inclinam ante a encarnação que se vai. Se
se pudesse sondar o coração dos filhos junto a
um túmulo entreaberto, só se sentiriam batidas de sentimentos verdadeiros,
profundamente tocados pela mão secreta dos Espíritos que a todos ditam estes pensamentos: Tremei se estiverdes em dúvida; a
morte é a reparação, a justiça de Deus; e eu vos asseguro que malgrado os incrédulos, meus amigos e minha família
acreditarão nas palavras que minha voz pronunciou antes de morrer. Eu era o
intérprete de um outro mundo.
11.
─ Dissestes que não gozais da felicidade que
entrevistes. Sois infeliz?
─ Não, pois cria antes de morrer, e isto na alma e na
consciência. A dor aperta aqui embaixo, mas eleva para o futuro espírita. Notai
que Deus soube levar em conta as minhas preces e a minha crença absoluta nele.
Estou no caminho da perfeição e chegarei ao fim que me foi permitido entrever.
Orai, meus amigos, por esse mundo invisível que preside os vossos destinos.
Este intercâmbio fraterno é caridade; é uma poderosa alavanca que põe em
comunicação os Espíritos de todos os mundos.
12.
─ Gostaríeis de
dirigir algumas palavras à vossa esposa e aos vossos filhos?
─ Rogo a todos os meus que creiam em Deus, poderoso, justo,
imutável; na prece que consola e alivia; na caridade, que é o ato mais puro da
encarnação humana. Que eles se lembrem que se
pode dar pouco: o óbolo do pobre é o mais meritório diante de Deus, que sabe
que um pobre dá muito dando pouco. É pre
ciso que o rico dê muito e muitas vezes para
merecer tanto quanto aquele.
O futuro é a caridade, a benevolência em todas as ações; é crer
que todos os Espíritos são irmãos, jamais se prevalecendo de todas as vaidades
pueris.
Família muito amada, terás rudes provas, mas sabe suportá-las
com coragem, pensando que Deus as vê.
Dizei sempre esta prece:
Deus de amor e de bondade, que dás tudo e sempre, concede-nos
essa força que não recua ante nenhuma pena; torna-nos bons, mansos e caridosos,
pequenos pela fortuna, grandes pelo coração; que nosso Espírito seja espírita na Terra, para
melhor te compreendermos e te amarmos.
Que teu nome, ó meu Deus, emblema de liberdade, seja o
objetivo consolador de todos os oprimidos, de todos os que têm necessidade de
amar, perdoar e crer.
CARDON